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28 DE ABRIL DE 2025
No artigo anterior, traçamos uma linha de desenvolvimento das especialidades dos ofícios da fé pública no curso da história, mostrando como escrivães, tabeliães e registradores firmaram-se como órgãos especializados, cada qual com suas atribuições bem definidas e demarcadas. Vimos também como as transformações tecnológicas e normativas vêm de esboroar os lindes definidores dessas especialidades, promovendo uma nova concentração de atribuições e funções, com efeitos diretos na arquitetura tradicional da titulação pública no Brasil.
De “volta para o futuro”, experimentamos a reconformação das especialidades, embora em outros termos. A digitalização dos meios não apenas condiciona os conteúdos – como na boutade de McLuhan -, mas põe em xeque os próprios fundamentos da titulação sob a perspectiva jurídica tradicional. Bits substituem formulários; extratos espiritualizam os títulos, agentes de IA (agentic AI) progressivamente absorvem atribuições do escrivão, do notário, do registrador; e os títulos – outrora celebrados e cercados de ritos cerimoniais e reconhecidos como verdadeiros pelo próprio Estado – agora podem nascer diretamente das máquinas, sem qualquer intermediação dos ofícios da fé pública.
Para onde caminha o nobile officium registral, da escrivania e da notaria?
A ressureição da pública-forma
Voltando às cartas de sentença notariais, as NSCGJSP-II dispõem o seguinte em seu Cap. XIV, no item 218, que, a critério do interessado, “as cartas de sentença poderão ser formadas em meio físico ou eletrônico, aplicando-se as regras relativas à materialização e desmaterialização de documentos pelo serviço notarial”.
As expressões contidas na norma paulista representam uma figura de linguagem, eis que a “desmaterialização” (digitalização) e “materialização”
(impressão/reprodução/”papelização”) nada mais são do que processos de transporte e fixação da informação em um dado suporte material – seja ele magnético, óptico, cartáceo etc. Trata-se do fenômeno de transmigração intermediática, como veremos abaixo, mas note-se: um documento “materializado” não o torna um original para todos os efeitos legais. Será sempre uma mera cópia, à exceção de um original tirado de um original, que é a reprodução dos documentos eletrônicos assinados digitalmente com assinaturas qualificadas.
O que nos chama a atenção é que a operação de transubstanciação midiática de documentos públicos e privados (materialização/desmaterialização) nada mais seria do que a revivificação da conhecida figura da pública-forma, ora ressurrecta, depois de abandonada pelo Direito brasileiro há várias décadas. Aqui se dá o ressurgimento de uma antiga figura do tabelionado medieval, repaginada para desafiar as novas demandas do admirável mundo novo dos meios digitais.
Voltarei ao tema da pública-forma digital em outro artigo. Noto, de passagem, que admitir-se a registro um título “desmaterializado/materializado” será o mesmo que franquear o acesso de meras cópias reprográficas (mesmo quando autenticadas pelo tabelião) como título inscritível, o que sempre se obviou no âmbito dos registros imobiliários.
Simulacros titulares
Estamos prestes a admitir simulacros de títulos no processo registral. A realidade jurídica (um título com origem, materialidade, portando presunções de legalidade e autenticidade) pode ser suprimida e substituída por sua emulação funcional (bits, IA, algoritimização de processos e registros dirigidos por dados (data-driven), um “duplo” que descortina um novo direito.
Os espelhos e a cópula são abomináveis, disse um dos heresiarcas de Uqbar: eles “multiplicam o número dos homens”. Os novos sistemas multiplicam as imagens arredias à sua densidade material e autêntica, substituindo a realidade jurídica por espelhos multifacetados.
A modernidade é disruptiva. No contexto cultural em que essas ideias vicejam, abundam metáforas para qualificar a revolução em curso. Steven Pinker assegura-nos que “a revolução digital, ao substituir átomos por bits, está desmaterializando o mundo bem diante de nossos olhos”. Para ele, a tecnologia digital “desmaterializa” o mundo. Ele parece sugerir que os bits representariam os tijolos fundamentais do edifício de um admirável mundo novo da hiper-realidade, como sugerido por Baudrillard. Nessa visão atomista repaginada, nada existiria, exceto bits, exaurido o mundo de tangibilidade concreta e substituído por representações.
Pinker reproduz o pensamento original de Nicholas Negroponte, para quem a mudança de átomos para bits seria uma tendência irreversível na sociedade – “não há como detê-la”, dirá, com indisfarçável otimismo. “A melhor maneira de avaliar os méritos e as consequências da vida digital – diz ele – é refletir sobre a diferença entre bits e átomos”. Assim como os jornais, revistas, livros, títulos, documentos, cartas de sentença, formais, certidões etc., que chegavam até nós sob a forma de átomos (papeis, ofícios, correios etc.), na era da informação nos chegarão por sequências de bits e bytes à velocidade da luz. As palavras-chaves aqui são: descentralização e acesso remoto a instâncias judiciais e extrajudiciais, instantaneidade, fiabilidade tecnológica (não jurídica) – o que pode promover a redução de custos e tempos processuais. O público “será mais bem servido por aqueles que souberem responder com maior rapidez e imaginação no emprego dos bits.”
Essa visão mostrou-se excessivamente otimista. É possível cogitar que os meios digitais não apenas transformam os conteúdos, mas, no limite, podem suprimir o real em sua substância tangível, substituindo-o por um conjunto de signos funcionais, desvinculados de qualquer mediação dotada de valor ético ou ancoragem institucional – como tradicionalmente se reconhecia no papel do juiz, do escrivão e do notário.
Como a seu tempo sustentou João Mendes de Almeida Jr., os órgãos oficiais “são subordinados somente à verdade e à realidade dos fatos que eles próprios praticam, das declarações que tomam, dos fatos que se passam na sua presença e assistência”. E concluiu: “E esta posição é uma garantia, não só para as partes, como também para os próprios Juízes”. No contexto dos títulos eletrônicos, formados sem o concurso dos órgãos da fé pública, esvai-se a noção clássica de ato autêntico como fenômeno social, jurídico e comunicativo que produz a prova dita autêntica e pré-constituída (instrumentum), cercada de formalidades publicísticas e ritualísticas para mobilizar a infraestrutura de garantia e segurança jurídica.
Clique aqui para ler a íntegra da coluna.
Fonte: Migalhas
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